23 de nov. de 2013

(Trecho de Os Três Mal Amados - João Cabral de Melo Neto)

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.


O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

11 de nov. de 2013

Partes de mim definham:
fragmentos, lascas, pedaços.
Todos os pretéritos
são arrastados pelas rajadas em meu existir.

As lufadas levam-me de tudo:
Levam meus erros, meus acertos...
Apartam-me.
Eu desintegro como poeira estelar.

Já assenti meu fado:
desato-me,
desprendo-me,
desmancho-me
de mim mesma.

(Um dia retorno ao pó do qual nasci)


7 de out. de 2013

Além

A saudade torna-se tolerável quando lembro dos reencontros, desse jeito o meu ostracismo constante é o tempo em que meu desejo condensa e se torna mais palpável que a ausência. Meu aguardo é cheio das suas memórias mais ternas e excitantes, ela carrega algo que me marca a pele toda vez que me toca. Às vezes meu peito se alarma com a distância e meu corpo estremece na tensão de um desejo não tão somente carnal, no entanto me guardo para ouvir sua voz... Algo no seu timbre me aplaca a alma. O telefone toca e em meio à nossa conversa tento gravar o som do seu riso e o tom distinto ao declarar.
“Se é, então é para ser.” ela diz docemente e eu me perco na ânsia de estar perto mas ao mesmo tempo eu me contento – e até me admiro – com esse sentimento que é capaz de viajar por fronteiras.

5 de out. de 2013

O Poeta Embriagado de Deus (Sama Rumi)


Viemos girando
do nada,
espalhando estrelas como pó.
As estrelas puseram-se em círculo
e nós no centro dançamos com elas.
Como a pedra do moinho,
em torno de Deus
gira a roda do céu.
Segura um raio dessa roda
e terás a mão decepada.
Girando e girando
essa roda dissolve
todo e qualquer apego.
Não estivesse apaixonada,
ela mesma gritaria - basta!
Até quando há de seguir esse giro?
Cada átomo gira desnorteado,
mendigos circulam entre as mesas,
cães rondam um pedaço de carne,
o amante gira em torno
do seu próprio coração.
Envergonhado ante tanta beleza
giro ao redor da minha vergonha.
................................................
Ouve a música do samá.
Vem unir-te ao som dos tambores!
Aqui celebramos:
somos todos Al-Hallaj dizendo: “Eu sou a Verdade!”
Em êxtase estamos.
Embriagados sim, mas de um vinho
que não se colhe na videira;
O que quer que pensem de nós
em nada parecerá com o que somos.
Giramos e giramos em êxtase.
Esta é a noite do sama
Há luz agora.
- Luz ! Luz!
Eis o amor verdadeiro
que diz a mente: adeus.
Este é o dia do adeus.
- Adeus ! Adeus !
Todo coração que arde
nesta noite
é amigo da música.
Ardendo por teus lábios
meu coração
transborda de minha boca.
Silêncio!
És feito de pensamento, afeto e paixão.
O que resta é nada
além de carne e ossos.
Por que nos falam
de templos de oração,
de atos piedosos?
Somos o caçador e a caça, Outono e primavera,
Noite e dia,
O Visível e o Invisível.
Somos o tesouro do espírito.
Somos a alma do mundo,
livres do peso que vergasta o corpo.
Prisioneiros não somos
do tempo nem do espaço
nem mesmo da terra que pisamos.
No amor fomos gerados.
No amor nascemos.

30 de set. de 2013

Adeus

Então... Vou embora.
Vou embora por uns tempos aí.
Para uns, fui antes...
Outros eu vi partir.
Vou deixar de lado o conforto do meu ser
E bailar pela vida.
Deixar o tempo me transformar
da maneira mais linda possível
no que eu hei de ser.

Pois é, eu vou
Porque se for pra ficar
Fico só em pensamento

E se sobrar saudade por onde passei
Peço que seja saudade sem delonga dolorosa.
Só e somente só
a lembrança contente do meu farfalhar.